Durante muito tempo as pessoas acreditavam que para ter o desempenho extraordinário de um expert (um Beethoven, Mozart, Michael Jordan, Pelé, Picasso), só tendo nascido com um talento inato. Porém, as pesquisas científicas das últimas décadas desconstruíram esse mito, revelando que por trás da alta performance demonstrada pelos experts, encontra-se muita prática no campo de atividade escolhido. E não só qualquer tipo de prática, mas a prática proposital e a prática deliberada.
Neste texto vou descrever a diferença entre a prática proposital e a prática deliberada e mostrar como elas são a causa da alta performance. Mas para isso, tenho que começar pela prática ingênua.
Prática Ingênua
A prática ingênua (naive practice) é como aprendemos a fazer a grande maioria das coisas que fazemos: começamos sabendo em termos gerais o que queremos aprender a fazer, obtemos instruções de como fazer essa atividade, praticamos a atividade até alcançarmos um nível aceitável de habilidade nela e depois paramos de melhorar no desempenho dessa atividade.
Através desse tipo de prática chegamos em um nível de desempenho “bom o suficiente”, mas longe de perfeito. Sabemos que poderíamos melhorar e às vezes até sabemos quais são nossos pontos fracos, mas esse tipo de prática não nos ajuda a ter o nosso desempenho além do “bom o suficiente”. Além disso, na medida em que já sabemos como desempenhar uma atividade em um nível bom o suficiente, deixamos de dedicar nosso foco consciente para a atividade, automatizando as partes dela que são possíveis automatizar.
Pense em como você aprendeu a dirigir ou a cozinhar ou a usar um computador, por exemplo. Se você não for um piloto de corrida, você deve ter tido aulas, praticado muito até chegar em um nível “bom o suficiente” e depois estabilizado nesse nível de desempenho até que atualmente consegue dirigir sem ter que prestar muita atenção consciente. Essa é a prática ingênua.
Prática Proposital
Diferente da prática ingênua, são raras as atividades que aprendemos a desempenhar através da prática proposital. Pense na prática proposital como o aprendizado por meio de exercícios feitos com a intenção exclusiva de melhorar o seu desempenho na atividade. Esse tipo de prática tem as seguintes características que a distinguem da prática ingênua:
- Tem objetivos específicos e bem definidos: o objetivo geral é decomposto em uma série de componentes que podem ser repetidos e ter seu desempenho avaliado (em termos de frequência, duração, latência, intensidade, resultado ou outra característica mensurável). Pense em todos os componentes que formam a habilidade geral “dirigir um carro”, por exemplo.
- Envolve tentar fazer o que você não consegue: diferente da mera repetição de uma atividade em um nível de habilidade no qual já se tem domínio, na prática proposital você tenta realizar algo que não conseguia quando começou a prática (e que pode ou não conseguir fazer na sessão). O objetivo da sessão ou do período da prática é justamente exercer uma área da habilidade que não se tem domínio até então, ou seja, subir um patamar.
- É focada: você dá toda sua atenção consciente para a atividade. Diferente da mera repetição sem pensar na atividade sendo realizada ou se distraindo com outra coisa (alguém correndo em uma esteira enquanto assiste algo na TV, por exemplo), na prática proposital enquanto você pratica, está observando o seu desempenho na atividade.
- Envolve feedback: você precisa saber se está desempenhando de forma correta, e se não, onde e como pode melhorar.
Como já mencionado acima, são muito raras as atividades que aprendemos a realizar através desse tipo de prática. Porém, se quisermos alcançar um desempenho excelente em uma atividade que escolhermos, esse tipo de prática nos ajudará muito, elevando o nível do nosso desempenho nessa atividade de forma descomunal. Basta lembrar que a maioria das pessoas e a maioria das atividades que você realiza não está no modo “prática”, mas sim no de “execução”, e você verá que isso te dará uma vantagem (em relação aos outros e em relação a si mesmo). Se você estiver sempre praticando para melhorar, em pouco tempo já estará melhor do que hoje; no médio e longo prazo alcançará a alta performance.
A prática proposital é um passo (muito) além da prática ingênua, mas ainda não tem algumas características definidoras da prática deliberada, o tipo de prática considerada como a melhor de todas para alcançar a alta performance.
Prática Deliberada
A prática deliberada é muito semelhante à prática proposital, mas tem algumas características especiais. Para ser aplicável em algum campo de atividade, este campo precisa:
- Geralmente ser bem estabelecido, com as habilidades relevantes tendo sido desenvolvidas ao longo do tempo (tocar piano ou lutar boxe, por exemplo são atividades cujas habilidades são estáveis);
- Ter pessoas que servem como professores ou treinadores que, ao longo do tempo, desenvolveram técnicas sofisticadas de treinamento que tornam possível o aumento estável nos níveis de desempenho desta habilidade (pegando o piano e o boxe novamente como exemplos, existem treinadores especializados nessas atividades).
A prática deliberada é proposital, mas também é informada. Em especial, a prática deliberada é informada e guiada pelos melhores performers / executores e por um entendimento do que esses experts fazem para se destacarem. Dessa forma, a prática deliberada é a prática proposital que sabe para onde está indo e como chegar lá.
Prática proposital x deliberada: considerações
Como podemos observar, as diferenças entre as práticas proposital e deliberada são atreladas ao campo de atividade. A prática deliberada está relacionada a poucos campos de atividade como performance musical, xadrez, balé, ginástica, e alguns esportes, campos nos quais além do estudante ou praticante realizar a prática proposital, o lado do instrutor faz toda a diferença. Existem até diversos filmes que mostram a relação entre o estudante (um violinista, um pianista, um lutador de boxe etc) e seu instrutor (um ex-violinista, pianista, lutador de boxe etc que agora se dedica a ensinar).
Anders Ericsson, o psicólogo criador do conceito de prática deliberada, aconselha que para áreas onde não é possível aplicar a prática deliberada rigorosamente falando (a grande maioria das profissões e campos de atividade), é aconselhável aplicar a prática proposital com os princípios da prática deliberada (até onde possível), sendo isso condição necessária e suficiente para alcançar a alta performance.
Os elementos mais importantes da prática deliberada (além de todas as características já descritas acima da prática proposital) que Ericsson aconselha tentar incorporar são:
- Aprender dos melhores antecessores (ou seja, saber quem realmente tem ou teve o melhor desempenho na atividade).
- A forma de desempenhar dos melhores antecessores ter sido provada como o diferencial para gerar melhorias rápidas no campo (ou seja, identificar as melhores práticas que causavam um desempenho superior).
Portanto, se você encontrar um mentor que realmente tenha um desempenho acima dos demais, que souber o motivo disso, que estiver disposto a te ensinar, e souber te ensinar, ótimo. Esse é o melhor cenário possível. Mas lembre-se que em muitos campos de atividade, a maneira de avaliar uma pessoa não é através do seu desempenho, nem de forma objetiva, por isso fique atento. Existem muitos campos em que uma pessoa pode ser considerada pelos outros ou se declarar como a melhor, mesmo não tendo prova objetiva nenhuma disso, apenas os vieses ou favoritismos das outras pessoas ou pura auto-promoção. Se for esse o caso do seu campo (ou se você simplesmente não encontrar alguém que queira ou saiba te ensinar), você vai ter que se virar sozinho. Você pode tentar avaliar o desempenho dos outros de forma objetiva e analisar o que realmente faz a diferença (as melhores práticas), podendo assim chegar a algum referencial que poderá ser usado como modelo, mesmo sem ter um mentor.
Embora tanto a prática proposital quanto a deliberada já tenham demonstrado cientificamente causar resultados muito superiores, vale ressaltar que por questões de conveniência (dos professores, não dos estudantes) e tradição, elas estão longe de serem a norma no ensino da grande maioria das atividades que aprendemos. A norma é dar mais destaque ao conhecimento do que à habilidade e através de exposições desse conhecimento pelo professor, nas quais o estudante fica em uma posição de escuta passiva ao invés de praticar o que está aprendendo.
Se quisermos elevar nosso desempenho em qualquer atividade, temos que ir além dessa conveniência e tradição e adotarmos a prática proposital e, (até onde possível) a prática deliberada. Assim, ao projetar uma abordagem ou uma série de práticas para alcançar uma alta performance, se faça as seguintes perguntas como um checklist:
- Essa abordagem de aprendizagem leva as pessoas a tentarem fazer coisas que não são fáceis para elas?
- Essa abordagem de aprendizagem oferece feedback imediato sobre o desempenho e o que pode ser feito para melhorá-lo?
- Aqueles que desenvolveram essa abordagem de aprendizagem identificaram os melhores performers / executores nessa área em particular e determinaram o que os diferencia dos demais?
- Essa abordagem de aprendizagem é projetada para desenvolver as habilidades específicas que os especialistas da área possuem?