Recentemente, li um livro sobre a atenção plena que achei muito interessante: McMindfulness: How Mindfulness Became the New Capitalist Spirituality, escrito por Ronald Purser.
Não vou tentar resumir o livro inteiro aqui, mas algumas das mensagens do autor que me chamaram atenção foram:
- Os divulgadores do movimento de atenção plena a vendem como se fosse um movimento revolucionário;
- No entanto, para trazer a atenção plena para o Ocidente, os divulgadores a descontextualizaram da ética e valores budistas;
- Sem os valores e preceitos éticos, vendida como uma ferramenta teoricamente neutra, mas inserida em um contexto neoliberal, a atenção plena acaba se tornando uma ferramenta de produtividade, de otimização, de conformismo e de inação social;
- Negligenciando os valores e preceitos éticos, o movimento de atenção plena ocidentalizado pautado pela agenda neoliberal, longe de ser revolucionário, acaba ajudando a conservar e a manter o status quo por não focar nas causas estruturais sociais, políticas e econômicas (desigualdade, injustiça, competição desenfreada, consumismo hedonista) dos problemas que a atenção plena acaba remediando (ex: ansiedade, estresse, preocupação, exaustão).
O que importa? Aspiração x Dever
Algo que notei nos últimos tempos é que em papos sobre valores e ética a maioria das pessoas associam automaticamente esses termos a empresas: “os valores culturais da empresa”, “a ética corporativa”. Ética e valores, nesse sentido, não parecem ser algo humano, mas algo corporativo. O que é permitido, o que é proibido e o que é obrigatório em determinada corporação.
Isso combina com o que filósofo Richard Taylor falava sobre a distinção entre a ética da virtude e a ética do dever (e que se assemelha até certo ponto com o que Nietzsche falava sobre valores nobres x valores de escravos): o conceito de virtude está enraizado na ideia de excelência na função humana, enquanto que o conceito de dever moral está relacionado com a ideia de Deus (agora, aparentemente substituído pelas corporações).
Para Taylor, seguindo uma linha de pensamento bem parecida com a de Nietzsche, ao longo da história a ética da aspiração (com o foco nos valores, excelência, virtude) foi sendo substituída pela ética do dever, que, por sua vez, se confundiu com a moralidade (certo x errado). Isso se consolidou de tal forma que, atualmente, entendemos as duas palavras (ética e moralidade) como sinônimos, enquanto que, da perspectiva da ética da aspiração, são conceitos totalmente distintos.
Ainda segundo Taylor, toda a filosofia greco-romana anterior ao Cristianismo (incluindo aí Sócrates, Platão, Aristóteles, os Estóicos) entendia a moralidade como uma questão de costumes ou convenções sociais de uma determinada cultura – o que era permitido, proibido e obrigatório dentro de um grupo de pessoas -, enquanto que a ética era uma questão de aspiração. A ética do dever responde a questões como: “O que é moralmente certo e errado? O que é a obrigação ou dever moral de uma pessoa?”. Já a ética da aspiração responde questões como: “O que é a excelência humana? O que leva à felicidade? Que tipo de pessoa eu devo aspirar a ser? O que é ser uma pessoa exemplar, se destacar do comum? O que é a realização humana (eudaimonia) e como alcançá-la?”.
A filosofia greco-romana, a partir de Sócrates, foca justamente na questão ética da aspiração como a parte mais prática da filosofia – não mais questionamentos metafísicos ou sobre do que é feito o universo ou sobre os deuses, mas simplesmente sobre como viver bem, como ter uma vida boa, como ser feliz e florescer. Isso era expresso no conceito de eudaimonia, viver em harmonia com seu eu superior. Isso é o que era buscado na ética da aspiração: a virtude, excelência ou viver de acordo com seus próprios valores.
Atualmente, confundimos ética com moralidade. Deixamos as questões morais para as empresas decidirem (como devemos agir sendo funcionários dessa ou daquela empresa?) e não nos perguntamos o que aspiramos como seres humanos (qual é o propósito ou função de um ser humano? como desempenhar essa função com excelência?).
Como isso se relaciona ao trabalho psicoterapêutico? A atenção a serviço da ação baseada nos valores
Na ACT (Terapia de Aceitação e Compromisso), dizemos que os processos e técnicas relacionados à atenção plena estão à serviço dos valores. Entrar em contato com o momento presente, se distanciar e observar os pensamentos indesejáveis, dar espaço para emoções desconfortáveis e ter uma perspectiva do Eu Observador são todos processos terapêuticos de atenção plena. Porém, o trabalho psicoterapêutico não termina aí. Esses processos relacionados à atenção plena não são fins por si só, são meios para capacitar a pessoa a se mover para as direções que valoriza, por meio dos processos de valores e de ação comprometida. Ou seja, da ética, do que a pessoa aspira para sua vida.
Diferente do movimento corporativo neoliberal da atenção plena criticado por Ronald Purser, o Estoicismo, o Budismo e outras filosofias também focam na questão da ética da aspiração: qual é a melhor versão de mim mesmo e como chegar a ela? Essas filosofias também trazem a atenção plena, mas não se esquecem dos valores. A atenção plena está a serviço dos valores. Sem os valores, a atenção plena acaba sendo apenas uma ferramenta à serviço de uma agenda que pode não ser a sua.
Por isso, na ACT buscamos esclarecer junto ao cliente quais são os seus valores: não em termos de certo ou errado (o que seria uma ética do dever), mas em termos de uma ética da aspiração:
- Que tipo de pessoa eu gostaria de ser?
- Que tipo de vida eu gostaria de viver?
- A serviço do que eu pretendo agir?
- O que eu escolho representar ou defender?
- Quais são as qualidades que eu gostaria que minhas ações tivessem?
- Eu escolho agir de que determinada forma como expressão dos meus valores?
Trazendo os valores e a ação comprometida para a vida, certamente, a atenção plena não fica mais a serviço de uma “agenda oculta” (uma programação cultural que pode ser prejudicial para nós mesmos). Nesse contexto, a atenção plena é um meio para agir efetivamente de forma a construir a vida e o mundo que se valoriza. O “ativismo” (ou ativação) fica evidente, no sentido de agir de forma efetiva para mudar o que pode ser mudado, de fazer o que importa, de fazer o necessário, ao trazer os valores e a ação comprometida.
Trazendo esse ativismo juntamente com a atenção plena, aí sim o temos um potencial revolucionário.